DENUNCIA DO SEQUESTRO DA REPRESENTAÇÃO DO POVO E APELO DE CORAÇÃO: NOVO RECIFE, NÃO!
Ontem saiu uma matéria no Jornal do Comércio sobre as expectativas em relação ao projeto Novo Recife: três moradores do Coque e dos Coelhos defendem o projeto e a matéria se posiciona como se estivesse falando em nome das comunidades inteiras. Além de não dar voz aos ditos “movimentos sociais” contrários ao Novo Recife, a matéria também deixa de mencionar que, entre esses movimentos, incluem-se também associações das próprias comunidades referidas.
A presença forte dos movimentos sociais das comunidades do Recife no último #OcupeEstelita, inclusive as citadas na matéria, comprova que a defesa do projeto Novo Recife não é consenso dentro delas. Existe a consciência de que empreendimentos como este, não só não os incluem, como prejudicam a eles e a toda a cidade.

Frei Aloísio, figura conhecida da Igreja progressista e das lutas do Coque, foi protestar contra o Projeto Novo Recife no #OcupeEstelita+1
Uma leitura minimamente atenta da matéria revela os argumentos questionáveis que procuram defender o projeto e sua perversidade:
1) o abandono atual da área como justificativa para aceitação de qualquer coisa que se construa ali, até 13 torres de 40 andares isoladas por muros e assentadas sobre gigantescas caixas de estacionamento;
2) a expectativa pelas vagas de emprego com os piores salários e menor qualificação, sem a menção da imensa improbabilidade de que os moradores do entorno se tornem usuários plenos do trecho de cidade que se pretende construir ali;
3) a esperança de dinamização do comércio local, sem considerar que a valorização fundiária por um modelo de cidade que preza pela exclusividade e não pela diversidade tende a expulsar e substituir não só os moradores como também o pequeno comércio e pequena indústria do entorno;
4) a confusão entre empreendedorismo e desenvolvimento.
A história nos ajuda a compreender as estratégias de captura de representação do povo: em 13/02/85 foi publicada uma matéria chamada “Moradores aprovam Shopping” que falava sobre um projeto de construção de um shopping center em terreno do Coque. A matéria tentava abafar a resistência no bairro que depois se mostrou tão forte a ponto de não apenas barrar a implantação do Shopping, como também efetivar a lei das Zonas Especiais de Interesse Social, que protegem o direito a moradia. Mais de 20 anos depois, acessamos essa mesma matéria para relembrar o poder público dos absurdos que estavam fazendo no Coque. Agora, os absurdos são para com a cidade como um todo. Seu centro, seu lugar de vida, poesia, memória.

Mapa no espaço da roda de diálogo entre comunidades no #OcupeEstelita+1 mostra como o Novo Recife é uma peça em um grande plano que incluía o Polo Jurídico e o Porto Novo
Espanta-nos estas estratégias de sequestro de representação e a utilização de argumentos como se o morador de espaços pobres quisesse o desenvolvimento imediato e os movimentos sociais quisessem negá-lo. Longe disso: queremos que esses projetos sejam amplamente discutidos pelas instâncias comunitárias e populares.
Espanta-nos que, gestão após gestão, o poder estabelecido não seja capaz de inovar e se deixar ouvir a ampla pressão da sociedade civil para que o projeto seja revisto e as prioridades invertidas: ao invés de privilegiar o poder econômico das empreiteiras, que se privilegiem as relações humanas, os direitos à memória e à paisagem, a revitalização do centro a partir de seus próprios moradores e não por blocos de cimento em cima da memória da cidade.
Espanta-nos uma cidade onde se morre no mar, morre-se na calçada ao se passear com um cachorro, morre-se de bicicleta por não haver espaço para os ciclistas que pedalam no dia-a-dia. Morre-se de filariose e de leptospirose. Morre-se de chuva nos morros.
De que desenvolvimento estão falando?
Desejamos compartilhar essa denúncia e o prenúncio do surgimento de um pensamento de alvorada: que o nosso desejo, de multidão intensa e com muitos nomes, possa por fim a tanto desespero em nome de um progresso que não nos diz respeito.
É preciso perguntar ao recifense o que ele deseja daquele lugar. Será que a maioria responderia que são torres imensas, que agridem a paisagem com uma altura incompatível com a história e a memória do bairro de São José? Como bem definiu a arquiteta paisagista e professora Lúcia Veras:
“Paisagem é identidade de um povo, porque é produto de uma relação necessária que o homem estabelece com a natureza para se consolidar e construir o seu território. Quando se destrói uma paisagem, perde-se de forma irreversível parte desta identidade, da memória e dos valores que se manifestam naquilo que é visível e que o olhar apalpa, mais ainda, aquilo que revela as especificidades dos lugares, das cidades, da sua história e das formas de se viver e de se interagir. Sendo produto coletivo, a paisagem é um direito de todos. Todos têm o direito à paisagem! [...] O projeto Novo Recife destrói a paisagem do Velho Recife. [...] O histórico bairro de São José do Recife, mais ainda, guarda o ‘espírito do nosso lugar’, conservando na linha de horizonte um panorama citadino onde, mesmo entre tempos distintos da Paisagem, é mantido o perfil horizontal que foi captado nas gravuras do século XVII de Franz Post. Entre dois terços de céu e um terço de água, a Mauritiopolis pintada por Post ainda pode ser identificada no Recife que se chega pelas águas. Esta é a última paisagem do Recife que, genuinamente, ainda guarda este patrimônio paisagístico.”
Sob o apelo do “progresso” iremos continuar a destruir a nossa memória, a nossa história, o nosso passado, os nossos recursos naturais? Já não basta o horror e a violência que estão fazendo com as nossas águas e com um dos maiores manguezais urbanos do país, com a construção da Via Mangue?
Prefeito, o senhor quer ficar na história como o prefeito que transformou essa cidade em uma Selva de Pedra, construindo por cima dos nossos mangues, das nossas águas e da nossa paisagem?
Basta desse modelo de desenvolvimento depredador que dilapida o patrimônio cultural, ambiental e viola os direitos adquiridos de moradores que construíram suas existências nesses espaços. Não vamos nos contentar com essas migalhas apelidadas de progresso. Com esse modelo, o Recife está na contramão da história, não honrando a tradição do bom urbanismo, da boa arquitetura e da boa engenharia, que tantos mestres que já partiram defendiam e que ficariam horrorizados com o processo destrutivo de cidade que vem ocorrendo.

Tentativa de capturar algumas representações das comunidades para falar a favor de projetos de interesse do capital imobiliário já é antiga. (via Coque Vivo)
O Recife merece mais e melhor. E seus moradores também.
Fonte: Direitos urbanos